quarta-feira, 24 de junho de 2015

Desabafo

É um tanto complicado explicar que não se está bem quando o motivo não é relacionado diretamente a você - e isso já é um baita dum sintoma do porque não se está bem.
Há cerca de 2 anos me assumi feminista. E nem de longe foi uma das decisões mais fáceis a serem tomadas, pois se assumir feminista dentro de um contexto cristão-católico-machista-heteronormativo é trazer consigo um letreiro luminoso na testa que diz LOCA EXAGERADA pra uma boa parte da população, mesmo que esse letreiro seja tão verdadeiro quanto as fotos promocionais dos lanches do Mc Donald's. Por vezes rola uma sensação de perseguição - "será que estão olhando pras minhas axilas peludas?", "será que estão julgando minha roupa curta mostrando minhas celulites?", "será que meus amigos e amigas estão incomodados com as minhas atitudes?", “será que eu não estou mesmo exagerando?” - seguida, a passos lentos e cambaleantes, de um lindo letreiro das cores do arco-íris que toca Beyoncé dizendo: FODA-SE. Aí neste momento algumas pessoas que estão lendo vão falar "tá vendo como é loca exagerada nem quer ouvir os outros é mesmo uma feminazi gayzista comunista etc etc etc" e gente, veja bem, não é esse o ponto.

(Ponto importante antes de continuar: se a população na qual você se encontra não sofreu opressão histórica e tem privilégios nessa sociedade, foi mal ae, mas você não é minoria só porque tem gente discordando de você. Apenas compreenda sua posição de privilégio e faça algo pra tornar as coisas ao seu redor menos desiguais. Espero ter sido clara, agora vamos continuar:)

Quando já se está inserida neste contexto feminista há um bom tempo, o olhar passa a ficar cada vez mais acurado. Quando mais situações opressivas se vive e se vê, mais fácil fica identificá-las, e mais fácil ainda fica perder a paciência, pois quando se recebe cantadas na rua todo dia, quando se vê pessoas comentando sobre seus ~pelos errados~ todo dia, quando se vê pessoas ditando regra pra sexualidade alheia todo dia, quando se vê pessoas tomando estereótipos como realidade todo dia, quando se vê pessoas não buscando se informar antes de atacar o amiguinho todo dia, o cansaço fica extremo, e o termômetro de empatia explode. Não é apenas uma empatia de "deve ser difícil o que você passa", mas sim uma empatia de "eu já passei/passo/passarei por isso". Mesmo que não seja comigo, se é com a amiguinha ou o amiguinho isso me dá náuseas. Mal estar físico acomete meu corpo se vejo pessoas repassando informação sem ao menos refletirem sobre o que se trata, se vejo pré-conceitos por causa da orientação sexual, da cor da pele, da visão política ou da religião.
Como li uma vez em um texto da maravilhosa Eliane Brum, se sentir mal nesta sociedade é sinal de saúde, e nunca pude concordar mais. E não é por ser opinião dela, mas sim por isso ser algo embasado, uma teoria construída através dos tempos que acompanhou o desenvolvimento dessa sociedade insana e viu o adoecimento permear a vida de muita gente que bota a mão na consciência e pensa “tem coisa errada demais nessa história”. E o meu sinal de saúde é passar mal. É ter dores de cabeça e nos olhos logo após ler que querem “vetar a ideologia de gênero”. É ter o estômago revirado cada vez que alguém me fala “ce fica querendo mudar o mundo, mas as coisas são assim, não tem o que fazer”, é simplesmente explodir em lágrimas quando uma travesti, uma pessoa negra ou uma minoria religiosa são espancadas, estupradas ou mortas apenas por serem quem são.
É "foda-se" porque ao tornar-se feminista, sendo essa uma definição tão negativada pela sociedade, você precisa ter desconstruído muita coisa. Você precisa ter entendido e sentido na pele alguns pré-conceitos apenas por ser categorizada como mulher. Você precisa ter entendido que se achar feia, sem auto estima e dependente não era coisa só da sua cabeça, que não era coisa só da cabeça de muita gente, e que sim era um fato, estatístico inclusive. Você precisa ter entrado a fundo no assunto porque já estava desconfiando da sua sanidade, e ao adentrar no universo, perceber que muita gente sente a mesma coisa e estuda a respeito a mais de um século. Você então passa a entender que a sociedade é desigual por n motivos, e a busca por equidade é vista como impossível porque muita gente tem diferenciados tipos de privilégios, que fazem com que elas tenham mais voz que você, e que isso não é culpa direta da pessoa em questão, mas que passa a ser quando mesmo ouvindo as reclamações, os estudos sobre o assunto e as estatísticas, ela opta por te chamar de exagerada apenas e seguir em frente. Ser feminista também é entender que nem todos irão concordar pois cada ser humano é único em sua construção, porém que optar pela ignorância (a dos saberes e a da agressividade) não é meramente uma questão de opinião, mas é um fato que por si só explica muita coisa (e que fatos e opiniões são uma zona na cabeça das pessoas, como bem pontuado pelo maravilhoso filme da Pixar “Inside Out”). É entender, de uma vez por todas, que o ser humano é bio-psíquico-social, e que isso não é uma filosofia barata, é filosofia e ciência, e se chama psicologia, e é construída dia-a-dia, de braços dados com os direitos humanos. É entender, enfim, que tudo vai te levar a crer na sua insanidade em prol do conforto alheio, mas que mesmo assim você não vai deixar de apontar textos, discursos, situações e comportamentos que pareçam invasivos e excludentes às mulheres, às pessoas negras, à população LGBT, às minorias como um todo.
E pior ainda que o pré-conceito escrachado e abertamente ofensivo, é o velado. É o “você não precisa ser tão feminista assim o tempo todo”. É o “você não tem o direito de querer que todo mundo concorde com a sua ideologia feminista” (como se o feminismo fosse uma entidade acima do bem e do mal... nesta altura do campeonato já cansei de ser didática, vão pesquisar, por favor), é o “tudo bem ser gay, mas não precisa exagerar”, é o “ideologia de gênero só vai destruir a vida de nossas crianças (vão pesquisar [2]), “o fim da família tradicional é o fim dos tempos” (vão pesquisar [3]), “amor livre é só putaria” (vão pesquisar [4]) e dentre outros exemplos que é melhor não listar pra evitar o mal estar.
Eu não tô pedindo pra você concordar comigo, eu tô pedindo pra você pensar.
Eu tô pedindo pra você por a mão na consciência e ser menos individualista.
Eu tô pedindo pra você parar de pensar no próprio umbigo e olhar ao seu redor.
Eu tô pedindo pra você pesquisar, pra você não aceitar pronto tudo o que ouve ou lê (incluindo meu singelo texto).
Eu tô pedindo pra você parar de diminuir a dor do amiguinho em prol da sua.
Eu tô pedindo pra você se colocar no lugar do amiguinho não com a sua vivência, visão e verdade de mundo, mas com a vivência, a visão e a verdade de mundo dele.
Eu tô pedindo pra você entender que sua religião não é única, e não é porque você acredita nela que ela seja mais verdadeira que as outras.
Eu tô pedindo pra você entender que vive em sociedade e ser individualista tá fadado ao fracasso.
E eu só tô pedindo porque eu não tenho como fazer nada de diferente disso, e mesmo se tivesse, não o faria, pois não cabe a mim impor nada a ninguém.

Agora, se mesmo diante de fatos você insiste em chamá-los de opinião, se mesmo sabendo das estatísticas sobre racismo, homofobia, feminicídio, o capeta a quatro e todos os últimos acontecimentos você ainda insiste que eu estou exagerando, eu não posso te pedir nada além de calar a sua boca diante da minha dor, porque eu não sou obrigada a respeitar quem não respeita as mina, as pessoas negras, as pessoas homossexuais, as pessoas trans e todas as pessoas que você insiste em chamar de exageradas e silenciar.

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